Pesquisador da UFSCar analisa economias ilícitas no Brasil
São Carlos
Estudos apontam ausência de regulação pública e ativação de ciclo vicioso de violência e reprodução de desigualdades
No Brasil, as economias ilícitas são uma realidade com diversos efeitos sociais, se configurando como um problema público. Segundo Gabriel Feltran, docente do Departamento de Sociologia (DS) da UFSCar e atual coordenador do Programação de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade, além de pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e sediado na Universidade de São Paulo (USP), este cenário não é novo na história do País. "No Brasil, sempre tivemos grupos fortemente marginalizados e que, portanto, sempre precisaram contornar a ordem dominante para seguir tocando suas vidas cotidianas. As elites criaram normas, leis, um Estado em suas diferentes dimensões, justamente para regular esses contornamentos", relata ele. Nas últimas décadas, entretanto, chegaram ao País economias ilegais transnacionais, mais pujantes e muitas vezes violentas. É a partir dessas mudanças que vêm à tona os estudos sobre as relações entre economias ilegais, violência e política.
Por meio de análises bibliográficas e pesquisas empíricas com ênfase etnográfica, Feltran acompanhou a trajetória de um jovem trabalhador de mercados ilegais nas periferias de São Paulo e, também, de uma Toyota Hilux roubada por ele. Com os estudos, o pesquisador detectou que o dinheiro ilegal rapidamente se transforma em legal, principalmente via consumo. "O dinheiro considerado 'sujo', que o jovem obtinha de mercados ilegais, como tráfico de drogas, é, em segundos, transformado em 'limpo', com a compra de mercadorias em marcas globais, por exemplo", reflete o pesquisador. Nesse sentido, a fronteira legal-ilegal produz, ao mesmo tempo, grandes empresários, pequenos bandidos e facções criminais. A guerra entre polícias e bandidos produz muita violência, mas não interfere nesses mercados. "O pequeno ladrão preso hoje é substituído amanhã, porque ele ocupa um posto de entrada do veículo em um mercado enorme, que seguirá sem ele", afirma Feltran. O pesquisador observou que, no Brasil, veículos roubados têm três principais nichos: desmontagem para venda de autopeças, revendas de veículos usados e troca por drogas e armas, sobretudo nas fronteiras nacionais, gerando, portanto, lucro em diversas esferas.
De acordo com Feltran, a economia ilegal faz parte de um jogo político-administrativo e da própria lógica de mercado. É possível, inclusive, afirmar que os mercados legais e ilegais estimulam um ao outro, conforme detalha o pesquisador: "O dinheiro que um jovem traficante de favela ganha com o tráfico é gasto no consumo popular, local, ou no telefone celular, economia transnacional. O valor produzido pelos mercados ilegais circula rapidamente para os mercados legais e, também, se converte em desenvolvimento. Os mercados ilegais são relevantes para a economia como um todo; por isso, não interessa para muita gente de bem que eles terminem".
Nesse sentido, Feltran explica que não existe um meio desse ciclo vicioso acabar, mas há formas de regulação possíveis - pelo próprio mercado, pelo Estado e por comunidades -, que têm sido testadas em mercados ilegais pelo mundo e dado bons resultados. "A bibliografia sobre o tema nos ensina, de Durkheim a Foote Whyte, dele a Michel Foucault ou Veena Das, que ações dos governos voltadas para regular ilegalidades não têm nunca o efeito de apagá-las por completo, mas de mantê-las sob taxas controláveis. Isso porque há produtividade nas ilegalidades, já que o sistema de justiça, as polícias, as cadeias e muitos outros espaços vivem delas. Mantendo-as sob controle, a face estatal da legalidade se justifica ainda melhor", relata.
O docente esclarece, também, as diferenças entre ilegalidade e violência. "Na Europa, foram roubados mais de 600 mil veículos em 2016. Há um mercado pujante de autopeças por lá, mas a violência é zero - esses carros foram furtados, não roubados à mão armada como no Brasil - que tem cerca de 500 mil veículos roubados ou furtados todos os anos, sendo que quase a metade ocorre no estado de São Paulo -, já que o seguro em países europeus é obrigatório. Sociedades que sabem reparar suas perdas e têm menos conflitos distributivos tendem a ser menos violentas. As formas de policiamento lá tampouco focam no pequeno operador desses mercados - elas focam em inteligência, investigação, reparação, e formas de reinserção nos mercados formais. Aqui, optamos pelo contrário", destaca. Nesse sentido, o Brasil segue na direção oposta, sobretudo pela ausência de regulação pública das economias ilícitas nas últimas décadas, algo que impede contrapartidas sociais e ativa um ciclo vicioso de violência e reprodução de desigualdades. "Um contexto com privação, desigualdade e polarização social permite que, no plano da população como um todo, sempre haja oferta de mão de obra para integrar esses mercados ilegais", reflete Feltran.
Para o docente, existem meios de alterar este cenário no Brasil, que passam por rever nosso modelo de segurança pública focada na repressão ao pequeno operador desses mercados. "O primeiro passo é a mudança do modelo de segurança pública centrado na guerra, porque ele não só não resolve, como aumenta o problema. Temos que agir com inteligência, esclarecer homicídios, entregar justiça à população, para que o Estado se legitime entre os grupos hoje marginalizados. Isso não se faz à força. O passo seguinte seria mudarmos as formas de regulação das economias ilegais. Esses mercados precisam ser regulados. O terceiro, que já deveríamos ter começado agora para colhermos frutos lá na frente, seria diminuir as desigualdades abissais do País, universalizando educação e saúde de qualidade, produzindo oportunidades reais para os mais pobres terem renda digna", defende o pesquisador.
Seu estudo sobre economias ilícitas no Brasil - intitulado "Economias (i)lícitas no Brasil: uma perspectiva etnográfica" - foi publicado em uma edição especial do Journal of Illicit Economies and Development, que também apresenta artigos de demais pesquisadores do CEM sobre esta temática. O texto completo pode ser acessado neste link.
Por meio de análises bibliográficas e pesquisas empíricas com ênfase etnográfica, Feltran acompanhou a trajetória de um jovem trabalhador de mercados ilegais nas periferias de São Paulo e, também, de uma Toyota Hilux roubada por ele. Com os estudos, o pesquisador detectou que o dinheiro ilegal rapidamente se transforma em legal, principalmente via consumo. "O dinheiro considerado 'sujo', que o jovem obtinha de mercados ilegais, como tráfico de drogas, é, em segundos, transformado em 'limpo', com a compra de mercadorias em marcas globais, por exemplo", reflete o pesquisador. Nesse sentido, a fronteira legal-ilegal produz, ao mesmo tempo, grandes empresários, pequenos bandidos e facções criminais. A guerra entre polícias e bandidos produz muita violência, mas não interfere nesses mercados. "O pequeno ladrão preso hoje é substituído amanhã, porque ele ocupa um posto de entrada do veículo em um mercado enorme, que seguirá sem ele", afirma Feltran. O pesquisador observou que, no Brasil, veículos roubados têm três principais nichos: desmontagem para venda de autopeças, revendas de veículos usados e troca por drogas e armas, sobretudo nas fronteiras nacionais, gerando, portanto, lucro em diversas esferas.
De acordo com Feltran, a economia ilegal faz parte de um jogo político-administrativo e da própria lógica de mercado. É possível, inclusive, afirmar que os mercados legais e ilegais estimulam um ao outro, conforme detalha o pesquisador: "O dinheiro que um jovem traficante de favela ganha com o tráfico é gasto no consumo popular, local, ou no telefone celular, economia transnacional. O valor produzido pelos mercados ilegais circula rapidamente para os mercados legais e, também, se converte em desenvolvimento. Os mercados ilegais são relevantes para a economia como um todo; por isso, não interessa para muita gente de bem que eles terminem".
Nesse sentido, Feltran explica que não existe um meio desse ciclo vicioso acabar, mas há formas de regulação possíveis - pelo próprio mercado, pelo Estado e por comunidades -, que têm sido testadas em mercados ilegais pelo mundo e dado bons resultados. "A bibliografia sobre o tema nos ensina, de Durkheim a Foote Whyte, dele a Michel Foucault ou Veena Das, que ações dos governos voltadas para regular ilegalidades não têm nunca o efeito de apagá-las por completo, mas de mantê-las sob taxas controláveis. Isso porque há produtividade nas ilegalidades, já que o sistema de justiça, as polícias, as cadeias e muitos outros espaços vivem delas. Mantendo-as sob controle, a face estatal da legalidade se justifica ainda melhor", relata.
O docente esclarece, também, as diferenças entre ilegalidade e violência. "Na Europa, foram roubados mais de 600 mil veículos em 2016. Há um mercado pujante de autopeças por lá, mas a violência é zero - esses carros foram furtados, não roubados à mão armada como no Brasil - que tem cerca de 500 mil veículos roubados ou furtados todos os anos, sendo que quase a metade ocorre no estado de São Paulo -, já que o seguro em países europeus é obrigatório. Sociedades que sabem reparar suas perdas e têm menos conflitos distributivos tendem a ser menos violentas. As formas de policiamento lá tampouco focam no pequeno operador desses mercados - elas focam em inteligência, investigação, reparação, e formas de reinserção nos mercados formais. Aqui, optamos pelo contrário", destaca. Nesse sentido, o Brasil segue na direção oposta, sobretudo pela ausência de regulação pública das economias ilícitas nas últimas décadas, algo que impede contrapartidas sociais e ativa um ciclo vicioso de violência e reprodução de desigualdades. "Um contexto com privação, desigualdade e polarização social permite que, no plano da população como um todo, sempre haja oferta de mão de obra para integrar esses mercados ilegais", reflete Feltran.
Para o docente, existem meios de alterar este cenário no Brasil, que passam por rever nosso modelo de segurança pública focada na repressão ao pequeno operador desses mercados. "O primeiro passo é a mudança do modelo de segurança pública centrado na guerra, porque ele não só não resolve, como aumenta o problema. Temos que agir com inteligência, esclarecer homicídios, entregar justiça à população, para que o Estado se legitime entre os grupos hoje marginalizados. Isso não se faz à força. O passo seguinte seria mudarmos as formas de regulação das economias ilegais. Esses mercados precisam ser regulados. O terceiro, que já deveríamos ter começado agora para colhermos frutos lá na frente, seria diminuir as desigualdades abissais do País, universalizando educação e saúde de qualidade, produzindo oportunidades reais para os mais pobres terem renda digna", defende o pesquisador.
Seu estudo sobre economias ilícitas no Brasil - intitulado "Economias (i)lícitas no Brasil: uma perspectiva etnográfica" - foi publicado em uma edição especial do Journal of Illicit Economies and Development, que também apresenta artigos de demais pesquisadores do CEM sobre esta temática. O texto completo pode ser acessado neste link.
05/12/2019
13:00:00
21/12/2019
23:59:00
Adriana Arruda
Sim
Não
Estudante, Docente/TA, Pesquisador, Visitante
Veículos roubados têm nichos de mercado, como desmontagem de peças para vendas (Imagem: Pixabay)
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