Pesquisas partem de demandas práticas da comunidade surda
A Língua Brasileira de Sinais (Libras) está cada vez mais presente na sociedade e em instituições de ensino e, para ampliar a conscientização sobre a importância do ensino de Libras, é comemorado hoje, 23 de abril, o Dia Nacional da Educação de Surdos. Em 24 de abril, celebra-se também o Dia Nacional da Libras, em alusão à data em que a legislação a reconheceu como língua, em 2002.
Na UFSCar, pesquisas relacionadas à Libras buscam respostas a demandas que surgem na prática, em salas de aula. Cristina Broglia Feitosa de Lacerda, docente do Departamento de Psicologia (DPsi), se dedica ao estudo da Libras desde 1993, quando ainda não existia legislação na área (que se inicia com o Artigo 18 na Lei nº 10.098, de 2000, e com a Lei nº 10.436, de 2002, e posterior Decreto nº 5.626, que a regulamenta, em 2005) e eram raros textos em Português sobre língua de sinais. Seus estudos envolvem a articulação com os processos educacionais, no intuito de dar suporte aos educadores - intérprete de língua de sinais e professor.
"Não produzimos pesquisa isoladamente para depois testá-la em sala de aula. O trabalho é feito de forma simultânea, de acordo com as necessidades do aluno", enfatiza Lacerda. A pesquisadora assessora redes municipais de Educação para implantação e acompanhamento do Programa de Educação Inclusiva Bilíngue, em escolas da Educação Infantil e Ensino Fundamental. O projeto está em andamento em São Carlos desde 2011, e ela já atuou em outras cidades, como Piracicaba, Campinas e São Paulo.
A pesquisadora conta que, em uma de suas descobertas, foi detectado, em sala de aula, que as crianças surdas se comunicavam bem por meio de sinais, mas não usavam expressões faciais, consideradas um componente essencial para a Libras - elas transmitem sentimentos que, para os ouvintes, equivalem ao tom de voz.
"Dependendo da expressão do rosto, é possível mudar o discurso", explica a docente da UFSCar. "Neste caso, as crianças não utilizavam expressões porque vivem em casas de pais ouvintes e usam a língua de sinais na sala de aula, com professores também ouvintes, e não surdos. Ao detectarmos essa questão junto aos educadores, reforçamos a importância da expressão para o entendimento da língua, algo que foi imediatamente colocado em prática, por meio de atividades dirigidas. Acompanhamos os alunos e os resultados eram nítidos: em dois meses, eles facilmente desenvolveram a expressão facial, aprimorando a comunicação", lembra Lacerda.
Currículo de Libras
Com base nas pesquisas realizadas e nas que estão em andamento, envolvendo estudantes de graduação, mestrado e doutorado da UFSCar, Lacerda tem a expectativa de organizar um currículo da Língua Brasileira de Sinais como suporte ao educador. O foco é pensar em instrumentos que ajudem os professores a olharem para a expressão e para a compreensão em Libras. "Há o estigma de que o surdo não escreve bem o Português, porque usa a língua de sinais como primeira língua. Existe uma condescendência com essa não-aprendizagem, quando na verdade comprovadamente sabemos que isso é um problema do ensino", destaca Lacerda.
Em um de seus estudos, a pesquisadora analisou a escrita, em Língua Portuguesa, de alunos surdos do Ensino Fundamental em uma escola inclusiva, na qual é desenvolvido um programa de educação bilíngue para surdos. Na escrita, eles expressavam suas emoções e desejos. "Concluímos que é possível chegarmos em uma escrita qualificada e de excelência da pessoa surda em Português - sua segunda língua - já no Ensino Fundamental. Mas, para isso, é preciso que haja uma estratégia metodológica de ensino adequada, uma educação bilíngue de qualidade, que coloque tanto a Libras quanto a Língua Portuguesa em circulação no ambiente escolar", relata a docente.
Com o intuito de contribuir para essa educação qualificada, uma de suas pesquisas em andamento envolve a narrativa de um livro de imagens, por crianças surdas do Ensino Fundamental. Para isso, foi criado um protocolo de avaliação, com 30 parâmetros específicos da Língua - que possui configuração própria, tal como a Língua Portuguesa, com níveis fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos, por meio de sinais, expressões faciais e corporais.
Para a detecção e medição desses parâmetros, os pesquisadores têm o apoio de adultos surdos, que narram a mesma história em Libras, em um padrão considerado de excelência. A partir de então, há uma discussão parâmetro por parâmetro, até aplicá-los nas narrativas das crianças para coletar os resultados. "Ao analisarmos a narrativa, anotamos, com base no protocolo, o que foi feito com excelência ou dificuldade e o que a criança deixou de fazer, oferecendo o material para uso do educador. Após intervenções, repetimos a tarefa com a mesma história, em seis meses, um ano e um ano e meio, acompanhando avanços e dificuldades", detalha.
Assim, o estudo traz um direcionamento para o educador sobre formas de melhorar o ensino de Libras. "Quando o projeto estiver pronto, ele será útil a demais educadores, que muitas vezes têm limitações para entender qual o caminho para melhorar a aprendizagem dessas crianças", adianta Lacerda.
Outra pesquisa, também envolvendo a narrativa, tem foco na valorização do fato de Libras ser a primeira língua da pessoa surda. Neste caso, professores surdos narram uma fábula aos alunos, e as perguntas sobre a história são feitas em Libras. "Estamos testando se o aluno compreende uma fábula narrada em Libras e se consegue compreender e responder às perguntas na mesma língua. Esse tipo de instrumento é inédito; o que temos, geralmente, é a narração em Libras com perguntas em Português, o que traz perdas relacionadas à Libras", reforça a pesquisadora.
Com isso, Lacerda ressalta que cada passo envolve pesquisa - desde a escolha da pergunta, até a maneira de contar a fábula. O intuito, após o final da coleta e da análise dos resultados, é colaborar para o entendimento de aspectos que possam se constituir como barreiras ou facilitadores de compreensão da Língua Brasileira de Sinais. O material deverá ser entregue às escolas, servindo como ferramenta para auxiliar o professor em sua didática e avaliação do ensino, entendendo as particularidades de cada criança surda.
Ensino e inclusão
No âmbito da Libras, Lacerda conta que é fácil compreender como ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. "Com base nas demandas sociais, realizamos pesquisas para buscar respostas e aperfeiçoar o ensino da Libras e, por sua vez, oferecemos cursos e atividades práticas à comunidade surda e ouvinte, inclusive externa à UFSCar."
Um dos fatores de inclusão é a existência de escolas-polo nas cidades, que concentram vários estudantes surdos no ensino regular, com professores que se comunicam por Libras e intérpretes da língua, que circulam diariamente pelos seus ambientes. Também oferecem atividades pedagógicas e administrativas voltadas aos estudantes surdos e ouvintes. Isso cria o sentimento de pertencimento, pois possuem comunidades com inserção diária da Libras. "É diferente, por exemplo, da escola oferecer uma palestra pontual sobre inclusão. Neste caso, as pessoas vivem, no cotidiano, com crianças e adultos surdos", defende Lacerda.
Em São Carlos, há duas escolas-polo, que convidam alunos surdos a ingressarem em seus ambientes. "Só conseguiremos um desenvolvimento da língua se a criança tiver com quem conversar. Se as únicas pessoas que se comunicarem em Libras com ela forem o intérprete e o professor, o desenvolvimento linguístico será tacanho. A inclusão do surdo significa inseri-lo em grupos de pessoas surdas como ele, para que a língua possa se desenvolver", analisa a pesquisadora.
No contexto do Programa de Educação Inclusiva Bilíngue da cidade de São Carlos, são oferecidos cursos de Libras também para familiares e outras pessoas interessadas, o que aumenta as chances de engajamento da comunidade surda com ouvintes que saibam a sua língua.
Já uma perspectiva ainda não concretizada nas escolas-polo de São Carlos é a criação da disciplina de Libras como curricular, para surdos e ouvintes. "Se a escola é bilíngue e se ali circulam surdos e ouvintes, é importante realizar o ensino da Libras para toda a comunidade escolar. Quando passa a valer nota, exigir provas, o ambiente se organiza para aquilo, e há um maior engajamento dos educadores e dos alunos. Em nossas experiências, Libras é bem recebida pelas crianças como disciplina - é instigante, é o aprender línguas, é a expansão do cérebro", afirma Lacerda.
No âmbito do ensino acadêmico, as universidades federais têm feito um movimento de inclusão e acessibilidade. No caso da UFSCar, além da oferta do curso de graduação, com o Bacharelado em Tradução e Interpretação em Libras (Libras)/Língua Portuguesa (TILSP), iniciado em 2015, há oportunidades de estudo em programas de pós-graduação, como o de Psicologia (PPGPsi) e o de Educação Especial (PPGEEs), e cursos de Libras pelo Instituto de Línguas (IL) da Universidade e pelo Portal de Cursos Abertos (PoCA).
Também existe uma mudança cultural em prol dessa acessibilidade. "A UFSCar tem professores e alunos surdos; não fazemos pesquisas para Libras, e sim junto com as pessoas surdas, que usam essa língua. Se eu quero propor algo, eu tenho aqui pesquisadores surdos para trocarmos ideias, o que faz bastante diferença", ressalta Lacerda.
Além disso, os eventos acadêmicos realizados online, por exemplo, que aumentaram durante a pandemia de Covid-19, têm comumente a janela de Libras, com tradução de um intérprete, fato importante e que gera mudança na sociedade. "O ideal é adotarmos uma postura ativa, sem ficar esperando a manifestação da pessoa surda para disponibilizar o intérprete em determinado evento. Precisamos, obrigatoriamente, tê-lo. Se o não-surdo assiste quatro lives com a janela de Libras, e na quinta não tem, ele se incomoda. O surdo já está incomodado faz tempo; quando os não-surdos começam a se incomodar, cria-se um movimento social, que abre caminhos e possibilidades para mais acessibilidade e inclusão social", finaliza Lacerda.